Um dia de poltrona

Por enquanto em Minicontos, mas…pensando em transformar em série/novela. O primeiro está aqui: Na Poltrona, caso alguém queira acompanhar.

Se puder deixar um recado com Sim ou Não para eu saber se você se interessaria, ou não em acompanhar uma continuidade dessa série/novela, agradeço. 😉

Crédito de imagem: http://sxc.hu

Ela sentou na poltrona totalmente à vontade, pernas cruzadas para o lado e, com a cabeça apoiada no encosto da velha amiga de tantos encontros, que hoje já lhe trazia aconchego, acompanhou com o olhar os preparativos de sempre. Ele sentava, cruzava a perna por cima da outra, ajeitava a barra da calça, que tinha deixado a meia fina aparecendo, contava as folhas viradas do bloco, ainda penduradas, prendia-as com um clip vermelho (qual seria a cor usada para suas sessões? – Pensou se hoje teria coragem de perguntar), pousava o bloco equilibrado no joelho e pousava a caneta no encosto de braço de sua poltrona.

 – Então… – Ela falou junto com ele.

 Ele soltou um riso abafado. Sabia o que aquilo significava. Ela tentava provocá-lo para manipular o rumo da conversa. Já tinha sido enganado em outras ocasiões, mas já tinha percebido o padrão, não cairia mais nesse jogo. Hoje era daqueles dias em que tinha que ser direto. E manter o foco e a atenção bem afiados.

 – Alguma crise esta semana?
– Se não tivesse, talvez me desse uma folga, ou te desse uma folga, ou desse uma folga para meu bolso… sei lá…
– E o que aconteceu?

 Ela ficou em silêncio, olhando para ele e pensando em como ele tinha ficado habilidoso em impedir seus rodeios.

 – Tive que ir ao banco fazer um pagamento. Daquelas burocracias que só beneficiam mesmo os banqueiros, sabe? Pagamento exclusivo no “banco que pariu”. Tirei forças do dedão do pé e fui. Estava chovendo, não muito, mas uma garoa fina, chatinha. E você sabe como as pessoas ficam quando o tempo está assim, né?

– Não tenho certeza, me descreva você.
– Insuportáveis, tontas, desorientadas. Parecem baratas que ingeriram algum veneno. Andam em zig-zag, esbarram em você, tudo com muita pressa, como se aquelas gotinhas de água fossem ácido e pudessem derretê-las. Guarda-chuvas e suas beiradas pontiagudas são armas. Deveriam pensar em alguma proteção para aqueles ferrinhos, sério!
– Visualizo mesmo. É bem chato. Aconteceu algo na rua?
– Acabei de descrever um passeio no inferno e você pergunta SE aconteceu alguma coisa? Tá. Eu entendi. Não, fora o inconveniente de ter que andar entre as baratas tontas, nada. Nada grave.
– E no banco?
– No banco… bem, na entrada tive que enfrentar uma fila para retirar a senha de atendimento, pois além das opções serem confusas e as pessoas idiotas, o sistema estava lento e imprimindo senhas erradas antes que terminássemos de clicar aquela infinidade de botões até chegar na que queríamos. Depois tive que despejar o conteúdo da minha bolsa na caixinha de objetos de metal, pois aquelas portas giratórias travam tudo, menos armas quando os bandidos entram. Até aí o de sempre. Eu controlando minha irritação com as coisas cotidianamente erradas, mas… então… sentei para esperar minha senha ser chamada. Olhei para o monitor para ver quanto a tortura demoraria e descobri que tinham dez números na minha frente. Isso do meu tipo de atendimento, fora o preferencial e um outro que não faço a menor ideia do que seja. Respirei fundo e lentamente, como você ensinou. E foi então que aconteceu. O volume dos sons do ambiente começaram a ficar muito altos. Cochichos, gente falando alto, o apito sonoro do guichê de atendimento, que não parava por conta do probleminha das senhas erradas, o sinal sonoro da porta de metal e sua voz robótica dizendo sem parar, “a porta detectou objetos de metal”, senhorinhas encrenqueiras querendo reclamar da moça no atendimento prioritário, sem se dar conta que era a acompanhante de uma senhorinha bem mais velha que elas, o chamado do caixa que repetia o número recém projetado no monitor, amigos saindo do caixa que resolveram parar e conversar em língua estrangeira ali mesmo, enfim, todo aquele barulho misturado foi ficando tão insuportável que não suportei mais. Dei um berro gutural, sobrepondo todos eles. E de repente fez-se um silêncio sepulcral no recinto. Todos me olhavam e vi, como se fosse em câmera lenta um guardinha sair de seu posto e vir correndo em minha direção. Gente se jogou no chão achando que fosse algum atentado, ou algo assim. Foi um pandemônio. E então o guarda perguntou se tinha acontecido alguma coisa. Quando respondi que o barulho estava muito alto e que me sufocava, que precisava de um pouco de silêncio, fui convidada gentilmente, com uma mão segurando meu braço e outra já segurando a arma no coldre, a me retirar do banco. Razão? Eu estava importunando as pessoas. EU!! Eu estava causando tumulto. EU!!! Aquele burburinho dos infernos que se fazia ali antes dos instantes de silêncio que eu consegui com meu berro não incomodavam ninguém, segundo eles. Então deduzi que não sou ninguém, pois me importunaram tanto que me fizeram gritar como uma louca.

Ela viu ele virar outra página do bloquinho, olhou para o relógio e viu que estavam nos minutos finais daquele encontro. Ele pousou o bloco na mesinha ao lado de sua poltrona e foi até sua mesa, onde pegou um bloco de receituário e preencheu. Lhe entregou duas vias.

 – Só essa semana. Meio por dia. Certo?
– Certo… Me responde uma coisa?
– Pergunta.
– Qual a cor do meu clipe?
– Seu cli… o que?

Ela apontou para o bloquinho.

 – Meu clipe? Qual a cor?
– Ah!… O clipe… Hoje será um preto.
– Ruim assim?
– Me diz você.
– É… acho que o preto está bom. Acabou?
– Isso ainda vai demorar…
– Hoje, acabou?
– Hoje acabou. Até terça.

 Ela levantou a receita.

–  Até.

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